quarta-feira, 25 de agosto de 2010

História da Velha Política de Campos, dos Lacaios e Exploradores do Povo.







Democracia, Justiça e controle político



Na primeira intervenção da série, que interrompeu o mandato do Prefeito eleito Carlos Campista em função de abuso do poder econômico por parte de seu apoiador e antecessor Arnaldo Vianna, que nem por isso foi impedido de se candidatar à Câmara Federal e tomar posse no pleito seguinte (2006), a expectativa criada em torno da capacidade de transformação das práticas políticas, sem mudança no sistema político, foi intensa. A inconsistência punitiva da legislação brasileira e a lentidão da Justiça, todavia, não lograram um teste efetivo dessa hipótese, não obstante a compreensível carga de responsabilidade que paira sobre a Justiça Eleitoral no momento em que ela rompe o pacto de omissão de priscas eras.

Infelizmente, o rompimento da histórica omissão das autoridades fiscalizatórias do Estado brasileiro é uma medida que vem tarde e sem a carga redentora que séculos de desmandos e arbitrariedades exigiriam. Muito pelo contrário, algumas das intervenções ocorridas em Executivos do Norte Fluminense mostraram claramente uma tendência “ao tiro pela culatra”, em termos políticos, das intervenções judiciais ao fim do processo eleitoral. Se muito, podemos dizer que os grupos concorrentes passaram a tratar melhor das aparências, pois o observado efeito inibidor de abusos está longe de compensar os prejuízos causados ao Estado e ao bem público pelas autoridades sacramentadas pelo atual sistema político-eleitoral.

Tanto no caso do uso indevido da máquina e recursos públicos para a promoção de seu grupo, caso das eleições de 2004, quanto no uso indireto dos mesmos, visando, segundo o TRE/RJ, à promoção de “práticas panfletárias da rádio e do jornal O Diário”, no caso das eleições de 2008, estamos diante do mesmo problema que resta intocado: a privatização do público pela classe política, entendida como o conjunto dos grupos que, uma vez eleitos, independente de sigla e ideologia, utilizam recursos além dos esforços partidários e da legislação pertinente para se perpetuarem no poder.

Em relação ao último caso, que parece ser visto por muitos como de menor relevância, cabe aqui um parêntese: a imprensa não partidária, por sua própria natureza, não pode se comportar com facciosismo, devendo, mesmo tendo uma orientação ideológica definida, cumprir seu papel social de informar com isenção e equilíbrio os leitores; afinal a informação é também um direito, cabendo a notícia engajada apenas aos veículos explicitamente vinculados a grupos partidários ou corporativos.
De outro lado, a punição pessoal dos líderes de tais processos de corrupção e abusos eleitorais é tão inócua quanto a omissão diante dos crimes administrativos graves que jazem por trás desso epifenômeno, e isso não apenas pela brandura das penas impostas, que deveriam ser mais duras e progressivas em caso de reincidência, mas pelo fato de que elas deixam incólumes os organismos políticos responsáveis pela reprodução de tais práticas. Ou seja, os partidos, que abrigam tais facções ou que promovem diretamente tais práticas, deveriam ser também atingidos pelas punições — por meio de ônus sobre fundo partidário, horário de propaganda eleitoral gratuita ou mesmo da nominata —, de modo que fossem estimulados a exercer de maneira efetiva seu poder e dever de filtro político para o exercício do poder.

A combinação atual de sistema político caótico com protagonismo judicial débil e delongado vem produzindo um quadro que, longe de engendrar qualquer efeito de aperfeiçoamento das instituições democráticas, como amiúde sugerem alguns especialistas desconhecedores desses processos concretos, caminha celeremente no sentido oposto, desmoralizando instituições republicanas constantemente agredidas por uma dinâmica eleitoral perversa, cuja regulação judicial é impotente ou contraproducente.

Desse modo, nosso sistema político parece ter sido cuidadosamente talhado para a autonomização absoluta dos eleitos em face dos eleitores, no interregno que vai de uma eleição a outra, sendo a oferta de serviços de clientela com recursos públicos uma forma de pagamento por essa autonomia e não uma efetiva contrapartida ao poder de decisão do eleitorado. Não obstante o poder esteja nas mão do eleitor, é patente que ele não se percebe como detentor efetivo desse poder nem enxerga nos partidos políticos (indisciplinados) instrumentos aptos para tal exercício.
Resta assim, como última saída, o controle direto da classe política pela sociedade civil insuficientemente organizada, politizada e instrumentalizada para impor freios efetivos à liberdade do corpo de representantes eleitos. Tal controle, por mais paradoxal que pareça, para se agigantar em meio a tantas desvantagens estruturais, deve lutar, para tornar-se efetivo, contra uma institucionalidade que privilegiou os interesses dos dirigentes por meio da manipulação caótica da liberdade eleitoral dos dirigidos — reduzida a nada pela anarquia institucional combinada à indiferença política elevada a verdadeira religião nacional. Pudéssemos trazer de volta o ativismo dos anos 1960-70, associando-o às liberdades de hoje, de fato teríamos um resultado até mesmo revolucionário sobre a ordem política caótica dominante. Não sendo possível tal empreitada, o que se coloca é a necessidade da descoberta de remédios de outra natureza no interior dessa mesma ordem.

Acontece no Norte fluminense apenas numa forma mais aguda aquilo que também se vê em São Paulo, Rio ou Minas: políticos inidôneos e improbos encontram nas urnas não o castigo para seu ativismo nocivo, mas a redenção, transcorridas suas rápidas penas e geralmente em cargos de hierarquia inferior, o lenitivo provisório para expiarem suas “culpas” e prosseguirem em suas exitosas “vidas públicas”, estimulados pelo sistema caótico de voto e organização partidária.

Os intrumentos a que se alude aqui são os de caráter restritivo da amplíssima liberdade das oligarquias políticas, que usam o voto popular contra os próprios interesses populares ou, na linguagem de Rousseau, adulam a “vontade de todos” (interesse privado imediatista) para solapar a “vontade geral” (interesse comum mediato). Que tais oligarquias edulcorem tamanha desfaçatez sob o rótulo da vontade popular é compreensível, mas isso não deveria eludir a distorção subjacente no processo, pelo menos no nível da Ciência Política.

Na verdade, o processo democrático, tal como se realiza nas eleições brasileiras, de um modo geral, é uma peça de ficção, pois o eleitor, mesmo que esteja imbuído de uma clara vontade, é incapaz de saber para onde sua escolha foi de fato direcionada na bacia das almas do cálculo da divisão dos votos pelas coligações. Mesmo no caso de seu partido não estar coligado, fica ele sem nenhuma garantia de que seu voto pelo menos ajude a eleger alguém com quem ele tenha alguma afinidade política mínima, visto que a maioria dos partidos brasileiros — inclusive os outroras combativos partidos de esquerda — preenchem suas nominatas com nomes sem nenhuma coerência programática ou histórica; isso para ficarmos apenas no campo daqueles que não abrem mão de fazer um voto consciente. Se ampliarmos essa consideração até o eleitorado que vota sem muita consciência, então chegaremos a um quadro de frustração quase completo, pois nesse estrato o papel do partido como guia ideológico é ainda menos pronunciado.

O controle social da política local, destarte, necessita avidamente de uma pauta nacional que substitua a anemia dos partidos, como se viu no protagonismo de rede da Lei da Ficha Limpa, que, independentemente de seu resultado final, mostrou essa necessidade de ligar o local ao nacional como modo de promover efetivamente a cidadania política.

A ideia da democracia participativa, em países com as características políticas do nosso, assume um caráter diverso daquele verificado em países institucionalmente maduros. Não se trata apenas de romper os limites aristocráticos das instituições liberais através de uma ação direta da cidadania, mas de instituir uma forma específica de controle do corpo político que o impeça de manipular o voto popular por meio da corrupção de Estado semi-institucionalizada.

Sem uma reforma política ampla, geral e irrestrita, os ensaios de controle social do poder local que surgem no país correm o risco de perderem o impulso em meio à poderosa barreira institucional legitimada pelo voto popular, que garante às neo-oligarquias o controle sobre o Estado, em seus diversos níveis, a despeito das ações localizadas, tênues e restritas da Justiça brasileira e de outros atores sociais e institucionais de boa índole.

Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do LESCE-CCH/UENF-DR (Laboratório de Estudo da Sociedade-Civil e do Estado – Centro de Ciências do Homem/Universidade Estadual do Norte-Fluminense – Darcy Ribeiro).

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